Análise Jurídica da Delação Premiada de Mauro Cid: Voluntariedade, Credibilidade e Controvérsias Processuais

A colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, no âmbito das investigações sobre a suposta tentativa de golpe de Estado de 2022, suscita complexas controvérsias jurídicas. Este artigo analisa os principais problemas do acordo à luz da doutrina e da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF), com foco nas questões de voluntariedade, credibilidade do colaborador e vícios de procedimento.
1. A Questão da Voluntariedade e a Sombra da Coação
O pilar de sustentação de qualquer acordo de colaboração premiada é a voluntariedade, requisito essencial previsto na Lei nº 12.850/2013. A doutrina jurídica diferencia a liberdade de locomoção da liberdade psíquica, sendo esta última o fator determinante para a validade do negócio jurídico. Conforme assentado pelo STF no paradigmático HC 127.483/2015, "o requisito de validade do acordo é a liberdade psíquica do agente, e não a sua liberdade de locomoção".
No caso de Mauro Cid, a voluntariedade foi posta em xeque após a divulgação de áudios pela revista Veja, em março de 2024. Neles, o militar teria afirmado ter sido pressionado a corroborar uma "narrativa pronta" da Polícia Federal, declarando que os investigadores "não queriam saber a verdade, eles queriam só que eu confirmasse a narrativa deles".
A controvérsia se aprofundou quando, após a divulgação, Cid foi preso preventivamente por obstrução de justiça e descumprimento de medidas cautelares. Em audiência de custódia, na presença do ministro Alexandre de Moraes, ele se retratou das críticas — chegando a passar mal durante o ato — e, posteriormente, classificou suas declarações como um "desabafo".
Apesar das alegações, a Primeira Turma do STF validou por unanimidade o acordo. O relator, ministro Alexandre de Moraes, ressaltou que "o colaborador, na presença de seus advogados, reiterou a voluntariedade e regularidade da delação premiada", encerrando, na esfera judicial, o debate sobre a coação.
2. Credibilidade do Colaborador: Contradições e Omissões
A credibilidade do delator é um fator crucial para a valoração de suas declarações. No caso de Cid, diversos episódios minaram a confiabilidade de sua colaboração:
- Violação de Medidas Cautelares: Investigações apontaram que Cid utilizou um perfil de terceiro no Instagram para manter contato com o círculo do ex-presidente Jair Bolsonaro, violando a proibição de uso de redes sociais. Confrontado no STF, ele inicialmente negou, para depois admitir parcialmente o fato.
- Omissões e Informações Incompletas: A própria Procuradoria-Geral da República (PGR) admitiu que Cid "escondeu muitas informações cruciais para a investigação e foi evasivo nos seus depoimentos", embora tenha optado por não pedir a anulação do acordo. Essa postura seletiva compromete a fidedignidade de seu testemunho.
3. Vícios Processuais e a Jurisprudência do STF
As controvérsias em torno do acordo de Cid dialogam diretamente com precedentes importantes do Supremo Tribunal Federal sobre a anulação de colaborações.
Homologação sem Anuência do Ministério Público
Um dos aspectos mais controversos foi a negociação do acordo pela Polícia Federal e sua homologação pelo ministro Alexandre de Moraes sem a concordância da PGR, que, sob a gestão de Augusto Aras, emitiu parecer contrário.
Este procedimento contrasta com o entendimento firmado pelo próprio plenário do STF em 2021, no caso Sérgio Cabral, quando a Corte decidiu que acordos firmados pela PF exigem a anuência do Ministério Público para serem válidos. Paradoxalmente, o próprio ministro Moraes votou, naquela ocasião, pela invalidade do acordo de Cabral justamente pela ausência dessa anuência.
Precedentes sobre Anulação de Delações
O STF já anulou acordos que apresentaram vícios insanáveis:
- Caso Sérgio Cabral (2021): O acordo foi anulado por 7 a 4 devido a "graves vícios", notadamente a falta de consentimento do MPF.
- Caso Antonio Palocci (2025): O ministro Dias Toffoli declarou a nulidade de processos ao identificar evidências de "conluio entre Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato", "pressão ilegal para delatar" e "violação da cadeia de custódia das provas".
Impugnação do Acordo por Terceiros
A jurisprudência do STF, consolidada no HC 127.483/2015, estabeleceu a regra de que terceiros delatados não possuem legitimidade para impugnar o acordo de colaboração. Os fundamentos são:
- Natureza Personalíssima: O acordo é um negócio jurídico que vincula apenas o colaborador e o Estado.
- Princípio res inter alios acta: Seus efeitos não atingem diretamente a esfera jurídica de terceiros.
- Distinção entre Acordo e Prova: O que pode prejudicar o delatado não é o acordo em si, mas as provas produzidas a partir dele.
Contudo, decisões posteriores da Segunda Turma (HC 142.205 e HC 143.427) relativizaram esse entendimento, reconhecendo que acordos manifestamente ilegais podem, sim, afetar a esfera jurídica dos delatados, abrindo margem para questionamentos.
4. Implicações Doutrinárias e Probatórias
- Valoração das Provas: A lei é clara ao vedar que uma condenação seja fundamentada exclusivamente nas palavras do colaborador (Art. 4º, § 16, da Lei 12.850/2013). A forte dependência das declarações de Cid para incriminar outros investigados levanta debates sobre a suficiência dos elementos de corroboração externos.
- Impacto de uma Eventual Anulação: Analistas jurídicos apontam que a anulação do acordo prejudicaria principalmente o próprio Mauro Cid, que perderia os benefícios penais negociados. As provas já produzidas a partir de suas informações, desde que validadas por outros meios, poderiam continuar a ser utilizadas na investigação.
Conclusão
A delação premiada de Mauro Cid cristaliza as tensões e os desafios do instituto da colaboração premiada no Brasil. As controvérsias sobre voluntariedade, credibilidade e, sobretudo, o procedimento de homologação sem a chancela do Ministério Público, ecoam precedentes que já levaram o STF a anular acordos.
Embora a Primeira Turma tenha optado por validar o acordo, as questões levantadas demonstram a necessidade de um rigor cada vez maior na fiscalização dos requisitos legais. A jurisprudência do STF sobre o tema permanece em evolução, sinalizando um escrutínio crescente sobre a legalidade e a legitimidade dos acordos de colaboração que se tornaram centrais no sistema de justiça criminal brasileiro.